Autor: politicaeeducacao

Freak Show: as novas aberrações

Em 1932, o cineasta Tod Browning (1880-1962) causou escândalo em Hollywood ao lançar o filme Freaks, hoje um clássico. Para criticar um costume horrível da época, de exibir pessoas com deformidades em shows e circos, Browning escolheu um elenco de atores com vários problemas na vida real. Alguns tinham microcefalia, outro não tinha metade do corpo, um terceiro era um tronco, sem pés nem braços. O protagonista é anão. Eles se rebelam e acabam realizando uma vingança contra os seres humanos “normais” que os escravizavam. Hollywood não entendeu, a Inglaterra baniu o filme durante 30 anos e a brilhante carreira de Browning como diretor de filmes de terror como Drácula (1931) já era.

Felizmente os tempos de “feira de horrores” ficaram no passado. O que era considerado “aberração” já não é. Se houvesse um show de horrores hoje em dia não seria para rir de alguém com uma deficiência física ou mental, embora alguns pseudohumoristas brasileiros talvez desejassem, até porque atualmente as aberrações são outras. Nada a ver com anomalias congênitas, mas com deformidades de pensamento. Prodígios da natureza que a gente nunca podia imaginar que pudessem existir andam por aí assombrando o mundo.

Senhoras e senhores, alguns destes freaks do mundo moderno:

– O jovem direitista: é um espanto. Em vez do rapaz e moça que faziam de tudo para contrariar o conservadorismo dos pais, são jovens que concordam em tudo com o que eles pregam. “Sim, mamãe”, repete o jovem direitista bem nascido. A não ser que os pais sejam moderninhos demais, aí eles preferem se mirar nos avós fãs da ditadura. Em sua visão, os governos militares foram uma época de prosperidade à qual o Brasil deve muito, e o desrespeito às liberdades individuais e aos direitos humanos, apenas um detalhe. Já os guerrilheiros que foram presos, torturados e que deram a vida para lutar contra a ditadura são terroristas sanguinários. Os bizarros jovens de direita são radicalmente contra a maconha, “coisa de vagabundo”. Na faculdade, basta sentir o cheiro de um baseado que eles deduram para a polícia que circula pelo campus –sim, eles se mobilizaram para conseguir que o campus, antes um espaço de livre expressão, passasse a ser policiado. Os jovens direitistas estudam, é claro, Direito. E adoram ir à missa.

– A mulher machista: é assombrosa. Trata-se de uma mulher, geralmente jovem, que cospe em todas as realizações da liberação feminina. Acha, aliás, que não deve nada ao feminismo, pelo contrário. Defende que o feminismo é a razão de toda a “infelicidade” e “frustração” das mulheres de hoje. Por causa do feminismo, brada, se uma mulher optar por ser dona-de-casa será execrada! É muito triste, diz a mulher machista, não poder abdicar da profissão para cuidar da casa e dos filhos, pois se sentiriam constrangidas pelos olhares de reprovação das feministas, estas desalmadas, péssimas mães que não sabem nem fritar um ovo. Elas odeiam que uma mulher esteja na presidência, acham um desserviço, já que todo mundo sabe que os homens são superiores nestas tarefas. Lugar de mulher é sendo primeira-dama. Muito mais elegante, inclusive, tipo Jackie Kennedy. Mesmo porque todo mundo sabe que as feministas são todas horrorosas e nem se depilam, não é mesmo? Qualquer hora as mulheres machistas sairão em marcha pela aprovação da lei José da Penha, para reivindicar o direito de apanhar do marido.

– O palhaço sem graça: é de chorar. Eles sobem no picadeiro para supostamente serem engraçados, mas não conseguem causar nenhuma risada nem fazendo cosquinhas. A reação da platéia ao que eles falam beira a depressão. Quando o palhaço sem graça faz uma piada, tem gente que sente até vontade de vomitar. O formato favorito deles é o stand-up comedy, uma fórmula norte-americana de fazer humor do qual copiaram o nome, não a criatividade. Mas há também palhaços de circo engomadinhos que se apresentam na tevê com o único objetivo de vender produtos para as crianças, com suas musiquinhas chatas e repetitivas. Ah, gente, fazer rir é tão século 20…

– O roqueiro a favor do status quo: é de arrepiar os cabelos. Acabou-se o tempo do roqueiro que criticava a burguesia e o sistema. Hoje a onda é falar bem de quem tem grana, um “vencedor”, e elogiar a direita “progressista” –esta, sim, sabia o que era bom para o povo, este imbecil. O maior alvo do roqueiro reaça não é a estrutura social injusta ( “injusta por quê? para quem?”) ou as desigualdades, mas os esquerdistas, estes provocadores de ditaduras militares. Se fossem gravar músicas hoje em vez de escrever manifestos de direita, como preferem, os roqueiros escreveriam letras como “você é pobre porque não trabalhou, uou, uou”, “os milicos são gente mal-compreendida, di-da, di-da”, “saudades da ditadura, yeah, yeah, yeah”, “a favor do status quo quo quoooooo”. Não se espantem se qualquer dia começarem a gravar duetos com ídolos sertanejos em suas fazendas. O lado bom de terem surgido roqueiros assumidamente de direita é que não há mais lugar para os hipócritas que ganhavam dinheiro como rebeldes sem causa, com canções que nada tinham a ver com sua origem burguesa, às custas da rebeldia genuína alheia.

Venham, venham ver as aberrações! O espetáculo não tem hora para acabar.

 

Publicado em 3 de maio de 2013

Fonte: http://socialistamorena.cartacapital.com.br/freak-show-as-novas-aberracoes/

Nos tempos do engavetador-geral: Refrescando Henrique Cardoso

(Geraldo Brindeiro, o engavetador, ops, procurador-geral da era FHC)

 

O que é mais vergonhoso para um presidente da República? Ter as ações de seu governo investigadas e os responsáveis, punidos, ou varrer tudo para debaixo do tapete? Eis a diferença entre Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva: durante o governo do primeiro, nenhuma denúncia –e foram muitas– foi investigada; ninguém foi punido. O segundo está tendo que cortar agora na própria carne por seus erros e de seu governo simplesmente porque deu autonomia aos órgãos de investigação, como a Polícia Federal e o Ministério Público. O que é mais republicano? Descobrir malfeitos ou encobri-los?

 

FHC, durante os oito anos de mandato, foi beneficiado, sim, ao contrário de Lula, pelo olhar condescendente dos órgãos públicos investigadores. Seu procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, era conhecido pela alcunha vexaminosa de “engavetador-geral da República”. O caso mais gritante de corrupção do governo FHC, em tudo similar ao “mensalão”, a compra de votos para a emenda da reeleição, nunca chegou ao Supremo Tribunal Federal nem seus responsáveis foram punidos porque o procurador-geral simplesmente arquivou o caso. Arquivou! Um escândalo.

 

Durante a sabatina de recondução de Brindeiro ao cargo, em 2001, vários parlamentares questionaram as atitudes do engavetador, ops, procurador. A senadora Heloísa Helena, ainda no PT, citou um levantamento do próprio MP segundo o qual havia mais de 4 mil processos parados no gabinete do procurador-geral. Brindeiro foi questionado sobre o fato de ter sido preterido pelos colegas numa eleição feita para indicar ao presidente FHC quem deveria ser o procurador-geral da República.

 

Lula, não. Atendeu ao pedido dos procuradores de nomear Claudio Fonteles, primeiro colocado na lista tríplice feita pela classe, em 2003, e em 2005, ao escolher Antonio Fernando de Souza, autor da denúncia do mensalão. Detalhe: em 2007, mesmo após o procurador-geral fazer a denúncia, Lula reconduziu-o ao cargo. Na época, o presidente lembrou que escolheu procuradores nomeados por seus pares, e garantiu a Antonio Fernando: “Você pode ser chamado por mim para tomar café, mas nunca será procurado pelo presidente da República para pedir que engavete um processo contra quem quer que seja neste país.”
 E assim foi.

 

Privatizações, Proer, Sivam… Pesquisem na internet. Nada, nenhum escândalo do governo FHC foi investigado. Nenhum. O pior: após o seu governo, o ex-presidente passou a ser tratado pela imprensa com condescendência tal que nenhum jornalista lhe faz perguntas sobre a impunidade em seu governo. Novamente, pesquisem na internet: encontrem alguma entrevista em que FHC foi confrontado com o fato de a compra de votos à reeleição ter sido engavetada por seu procurador-geral. Depois pesquisem quantas vezes Lula teve de ouvir perguntas sobre o “mensalão”. FHC, exatamente como Lula, disse que “não sabia” da compra de votos para a reeleição. Alguém questiona o príncipe?

 

Esta semana, o ministro Gilberto Carvalho, secretário-geral da presidência, colocou o dedo na ferida: “Os órgãos todos de vigilância e fiscalização estão autorizados e com toda liberdade garantida pelo governo. Eu quero insistir nisso, não é uma autonomia que nasceu do nada, porque antes não havia essa autonomia, nos governos Fernando Henrique não havia autonomia, agora há autonomia, inclusive quando cortam na nossa própria carne”, disse Carvalho. É verdade.

 

Imediatamente FHC foi acionado pelos jornais para rebater o ministro. “Tenho 81 anos, mas tenho memória”, disse o ex-presidente. Nenhum jornalista foi capaz de refrescar suas lembranças seletivas e falar do “engavetador-geral” e da compra de votos à reeleição. Pois eu refresco: nunca antes neste País se investigou tanto e com tanta independência. A ponto de o ministro da Justiça ser “acusado” de não ter sido informado da operação da PF que revirou a vida de uma mulher íntima do ex-presidente Lula. Imagina se isso iria acontecer na época de FHC e do seu engavetador-geral.

 

O erro do PT foi, fazendo diferente, agir igual.

(texto publicado originalmente no blog socialistamorena em dez/2012)

Biográfo de Che: ” Que herói a direita tem para colocar em camisetas? Pinochet?

 

Em 2007, quando o assassinato de Che Guevara completou 40 anos, a revista Veja, cujo modelo de jornalismo já conhecemos (leia aqui sobre minha experiência na semanal da Abril) publicou uma reportagem de capa, ao estilo “guia politicamente incorreto” de seus foquinhas amestrados, para tentar demolir o mito. Dias depois, uma carta pública do biógrafo de Che, o premiado jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, desmentia o teor da reportagem praticamente por completo, acusando seu autor de ter sido parcial e desonesto (leia aqui).

“O que você fez com Che é o equivalente a escrever sobre George W. Bush utilizando apenas o que lhe disseram Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu ponto de vista”, escreveu Anderson, cujo livro é apontado pela própria Veja como “a mais completa biografia de Che”. Espantosamente, este libelo de mau jornalismo vem sendo utilizado nos últimos anos pela direita indigente intelectual brasileira para tentar reduzir Che a um “assassino”, como se o contexto, uma revolução, não justificasse mortes. Tem colunista de jornal aí que só se refere a ele como “porco fedorento”. Este é o nível deles.

Mas qual o interesse dos cérberos reaças de enlamear Che Guevara? Será que é porque não tem nenhum ídolo do lado de lá para servir de modelo aos jovens a não ser torturadores, generais ditadores e exploradores da miséria do mundo? Leiam abaixo a entrevista que fiz com Jon Lee Anderson para CartaCapital na época e vejam o que ele responde.

***

(O jornalista Jon Lee Anderson. Foto: divulgação)

Guerra é guerra*

O jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, autor de Che Guevara – Uma Biografia (Editora Objetiva), considerado o mais completo relato sobre a vida do guerrilheiro executado em 1967, rebate incisivamente as acusações de que Che fosse não um herói, mas um assassino frio que se regozijava de matar seus inimigos. Lee Anderson é colaborador da revista The New Yorker desde 1998. Respeitado correspondente internacional, escreveu, além do livro sobre Che, A Queda de Bagdá (Editora Objetiva) e Guerrillas (inédito no Brasil), em que analisa os mujaheddin do Afeganistão, a FMLN (Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional), de El Salvador, a Unidade Nacional Karen (KNU) birmanesa, a Frente Polisário do Saara Ocidental e um grupo de jovens palestinos que luta contra Israel na Faixa de Gaza.

O jornalista criticou a reportagem de capa da revista Veja em que o revolucionário argentino é acusado de ser uma farsa e até de não gostar de tomar banho. “O artigo de Veja é ridículo! Baseado em fontes parciais e comprometidas, sem nenhuma novidade, é um exemplo singular de jornalismo barato, ou seja, algo construído a partir do nada, mas com o objetivo de fazer sensacionalismo. Embora aparente ser jornalismo investigativo, na realidade é puramente tablóide.”

Leia a seguir a íntegra da entrevista de Jon Lee Anderson, que se encontra atualmente viajando por vários países dando palestras sobre Che Guevara. Ele falou à CartaCapital via e-mail enquanto esperava, no aeroporto de Miami, um vôo para Caracas.

CartaCapital: É verdade que Che Guevara se acovardou em seus últimos momentos, dizendo: “Não disparem. Valho mais vivo do que morto”?

Jon Lee Anderson: Não me consta e francamente duvido que tenha dito isso. Tudo parece crer que, ao contrário, demonstrou muita coragem em seus últimos momentos, como havia demonstrado antes. Não se acovardou. Isso é uma invenção para desacreditá-lo.

CC: Che foi um assassino frio e cruel? Tinha prazer em matar?

JLA: Che queria mudar o mundo. Não foi cruel. Foi, isto sim, uma pessoa muito rigorosa e teve um período severo (mas totalmente justificado pelas normas da guerra) na guerrilha cubana com traidores, desertores e demais. Executou algumas pessoas e ordenou a execução de outras. Depois do triunfo, presidiu os tribunais para criminosos acusados de delitos pelo antigo regime, tais como tortura, violação e assassinato. Centenas deles foram julgados e justiçados. Posteriormente, houve uma tentativa de um grupo de críticos da revolução cubana de reviver essa época para apresentar o Che como uma espécie de assassino em série, como fez Veja. A verdade é que Che se portou como um soldado encarregado de uma tropa em precárias condições e com a responsabilidade de um oficial. Não fez nem menos nem mais do que qualquer outro militar confrontado com situações de vida ou morte. Não se regozijou de matar, assumiu-o como um mal necessário da guerra, por sua vez necessária para mudar o regime cubano de Fulgencio Batista. Ninguém nunca acusou Che e seus combatentes de haver matado soldados inimigos capturados, nem os feridos que encontraram. Ao contrário: Che os socorreu pessoalmente ou providenciou para que fossem socorridos. Em alguns casos liberou soldados presos, à diferença da tropa de Batista, que assassinou rebeldes capturados e civis simpatizantes também. Descontextualizar as ações de Che na guerra, além de tendencioso, é totalmente absurdo do ponto de vista histórico.

CC: Alguns soldados criticam a atuação de Che como líder, dizendo que foi fraca, desastrosa. Ele não sabia liderar?

JLA: Os líderes nem sempre são populares com todos os seus subordinados. Alguns podem ter se ressentido com Che por sua língua afiada e tendência a não perdoar os idiotas nem os frouxos – podia ser muito ácido. Mas outros respeitaram este mesmo rasgo da personalidade do Che e o definiram como um fator de seu crescimento pessoal. Aceitaram a crítica e trataram de melhorar para também receber o beneplácito de Che, a quem respeitaram muito por sua coragem, honestidade e incorruptibilidade. Em resumo, sim, sabia liderar, mas era muito exigente.

CC: Che matou gente com suas próprias mãos?

JLA: Que soldado não mata? A guerra é um teatro bélico no qual os homens enfrentam sua própria morte e tentam matar os inimigos para que não os matem.

CC: A biografia do Che é a história de um fracassado, como defendem alguns?

JLA: Isso depende da ótica política de cada um, obviamente. Eu acho que o legado do Che é mais inspirador que derrotista. Quer dizer, é certo que ele não triunfou em seus esforços para fomentar a revolução em países como o Congo e a Bolívia. Mas o legado que deixou, de que um homem pode tentar mudar o mundo e que pode deixar um exemplo que estimule outros a segui-lo – inclusive depois de morto –, é mais duradouro. Universalmente, o Che é, fracassado em vida ou não, visto como um herói, um símbolo de rebeldia e princípios diante de um status quo injusto. Isto é o que enlouquece os de direita, o que os incomoda: que o Che siga potente como um símbolo, um mártir, um herói. Que herói eles têm para ostentar à raiz da Guerra Fria, alguém que a garotada queira pôr em camisetas? Pinochet???

CC: Em sua opinião, quem matou Che, a CIA ou o Exército boliviano?

JLA: Está comprovado que foram os dois. A CIA esteve presente. O agente Félix Rodríguez admite ter recebido a ordem de executar Che do Alto Comando militar boliviano e de haver pedido a um voluntário para cumprir a ordem. O sargento boliviano Mario Terán levantou a mão e o fez. A responsabilidade é conjunta, compartilhada.

CC: O senhor é um fã de Che? Acredita que ele seja um herói?

JLA: Sou seu biógrafo, não um fã. Os fãs são totalmente acríticos, são groupies para quem seus heróis podem fazer qualquer coisa e o aceitam. Eu não sou fã de ninguém porque ninguém é infalível. O Che tem meu respeito, isso é verdade. Havia aspectos nele dos quais eu não gostava, e outros que sim. Se no meu julgamento tinha aptidões de herói? Sim. Viveu de uma forma muito heróica, sobretudo ao final. E morreu com valentia. Isso, como sempre foi para a humanidade através da história, o faz um herói. Assassinar um homem ferido e depois esconder seu cadáver, isso é covardia. Qualifica- se como um crime de guerra.

*Reportagem originalmente publicada em CartaCapital em 11/10/2007.